Praça do Patriarca - São Paulo-BRI
Findou o mês de outubro àquele dia. Ainda havia ventos frios... Ouvi dizer que os ares estão mudando o planeta, se para melhor ou se para pior, não sei bem dizer. Procuro vozes no tempo para me contar para onde vai o vento, se pros oceanos, se pros desertos. Os homens vão pra muito longe ou vêm aos hospitais queixar-se.
Novembro, quatro correntes de vento gélidos se vão em noite úmida. Tem chovido pouco neste início do mês -9 horas e 32 minutos-, a noite é morna e brisas gélidas me dão a sensação de outono-inverno meia estação subtropical. A cada instante que passa é mais um desperdício do meu sono, irrequieto. Da ponta da minha língua vem uma áfita por qualquer coisa ingerida às pressas que ajudou o meu stress a me trazer cá ao Samaritano com mais rapidez, hospital do tempo dissipado, gélido igual aos ventos. Não estou enfermo, mas ansioso. Minha mulher queixou-se de dores sub-abdominais, eu não sei avaliar tais diagnósticos, cistite, gases, talvez, palavras dela, por isso, vim socorrê-la ao Pronto-Socorro. Meu filho Enzo, 3 anos e 10 meses, dorme no banco traseiro do automóvel. Demora-se o pronto atendimento e os ventos frios me acompanham.
Sou plantonista com olhos de coruja mãe. Do banco do timoneiro, sou prontidão. O parque do estacionamento está movimentado, entram e saem automóveis polidos, alguns de janelas escuras que não se dão notícias. Não é novidade num estacionamento de automóveis, neste bairro, do pronto-socorro, tanto movimento de autos novos, ambulância agitada de luzes avermelhadas, pessoas apressadas, mães com crianças acobertadas com lençóis. Pais apreensivos fumam e alongam-se às paciências em chaminés a cheiro de tabaco. Homens fortes em ternos escuros, aparentemente, rudes e grandes, com seus talkmen ambulantes, são solidários entre si, conversam à distância. Talvez, discutam regras de disposição das máquinas e do comportamento das pessoas, alguns se agitam impacientemente no páteo, assistido pela guardiã da locadora.
Não sei quantas horas mais terei de esperar. Meu Enzo dorme. Ouço seus suspiros ofegantes. Mal acomodado, mexe-se, retorce-se. Mamãe à espera pacientemente pela burocracia do atendimento, sentada e sentindo dores ainda? Vejo-a através da transparência da porta-entrada de vidro, paciente impaciência. Saúde neste país demora muito. Casos extremos, sem nenhum “privilégio”, que não podem esperar nem um pouco a mais, morrem moribundos da má sorte em corredores da saúde pública. Impaciência também tem limite, paciência não. Devo esperar.
O privilégio de não se ter que esperar por socorro custa o tempo mínimo que se tem entre a vida e a morte. Não é este o caso. Mas se gasta com previdência pública e privada, e ainda, se tem que esperar enfadonhos atendimentos. - É mais sensato esperar por previdência privada? -É possível que seja. Tudo é caro e a qualidade dos serviços se conta sim, com muita paciência ou, então, não se deveria esperar tanto, se o atendimento é privado, exigimos então, no mínimo mais rapidez. Mas isso também não acontece, porque há dinâmica a outras emergências. Enzo dorme. Minha mulher é a impaciência sem emergência, indigna-se e acalma-se, e tem-se na esperança o amor e depois.
O relógio do descanso não pára, adiantam-se as horas. Meu corpo está cansado. Meus olhos ardem e reagem à fumaça de fumos e de monóxido de carbono, a poluição da impaciência aumenta e também dói. O pouco espaço entre o volante e a minha barriga me sugere o pavor da noite longa, e o marasmo das estações de rádio em marteladas maçantes repica aos tímpanos os ventos frios. Ouço no rádio do meu console a moça do tempo: amanhã vai chover. -Choverá? -Previsão para essa quarta-feira. – Meu Deus, amanhã vai chover! Tomara que seja à madrugada!
Se o homem pudesse, criaria um elo entre o tempo mítico e as origens dos males de então e de vindouros, e a solução deixava que as águas levassem a doença humana por esses rios diluídos, à madrugada, assim, ninguém ao amanhecer se lembraria do caos nem da lama. Todos os males assim seriam lavados ou preventivamente curados com as águas da quarta-feira às cinzas cinza. Aquelas crianças parariam de chorar, aquelas senhoras sonolentas, agora, estariam em suas casas descansando com seus maridos, aqueles senhores fumantes beberiam água ou vinho e estariam dormindo ao sono de amanhã, minha mulher, branca e alta de um louro escuro, talvez, já de faces mais coradas, ouviria as minhas reclamações, mas sorrir-me-ia sem mais dores nenhuma e mais feliz ao milagre das águas da chuva.
A vida é assim, às vezes, longa ou curta, mais ou menos doída para alguns, outras vezes, nada disso acontecera. Às vezes, a vida vem de corações para corações ou vão para corações transplantados e continua. Essa vida de distante, diz-se que vem de um tempo imensurável, sequer se sabe ao certo onde teria começado e nem aonde haveria de terminar. Há vida que vem capengando por ambulância, outras não chegam sequer ver a luz vermelhas tremulando do mundo, sucumbem-se e, nem se vêem capengando em nenhum lugar, perecem sem dizer aos pouquinhos nada a ninguém e fim.
Atrás do automóvel parou uma ambulância girando suas lanternas coloridas, há movimento de homens-bombeiro e civis consternados. Agem rápidos. Não notei a saída de nenhuma maca. Quem sabe a vida foi socorrida a tempo. Penso que seja um homem ou uma mulher, talvez uma criança grande que não a vi entrar. Embora haja hoje muita gente socorrendo animais de estimação, será? -gato, rato, cachorro, iguana, lagartixa, baratinha branca, tatu, porco-espinho ou, até mesmo, um passarinho doce que cantava triste a ilusão da liberdade, pois, mal interpretado, a solitária dona teve indigestão compulsiva de compaixão: mas não compreendeu o canto da avezinha infelizmente, ainda solidária à reencarnação, correu para o Pronto-Socorro dos animais, para tentar salvar a avezinha. Não sei. Tenho dúvida. Mas foi rápido o desfecho em volta da ambulância. Não vi o enfermo passar nem chorar, nem tampouco o canto do sabiá.
Pessoas transitam acompanhadas ou sozinhas pelo corredor ou pelo páteo do estacionamento. Alguns pagam taxas de permanência à moça da guarita que com um aceno aos homens fortes, num instante, aparece o automóvel e sobre as quatro rodas, alguém se vai sob as luzes das alamedas de Higienópolis ou Perdizes, porque esses bairros contíguos me confundem. Nunca sei se é um ou outro. Ainda mais nessas condições de padrinho do tempo vazio, d’onde só sinto a brisa gélida desses ventos daqui e ainda assim me dói a espera da minha paciência.
O relógio do painel marca o tempo suportável, possível ao meu tempo contínuo. Passam as horas e meia, enfadonho e solidão. Enzo se mexe no curto espaço do sofá traseiro da máquina rudimentar, mas soberba dos homens ditos modernos - brinquedo efêmero da necessidade adicional ao tempo possível da viagem da espécie de primata avançado, mas mutante breve. A moça do rádio anuncia: vinte três horas e trinta e um minutos em São Paulo.
- Mentira!
“A mentira não está no discurso, mas nas coisas”.
Então as coisas são mentiras e o discurso pode ser meia verdade, porque o discurso diz da mentira das coisas.
Mas por que meia verdade o discurso e não uma verdade inteira?
— Porque aí entraria o prolator da dita meia verdade que também é uma mentira. — Efêmera mentira!
— De que coisas você fala, homem solidário?
— Falo da vida.
— Então, tomo suas palavras, a vida do homem é uma mentira?
— É. A vida per si é uma mentira absoluta.
— Mentira absoluta!
— Eu sou uma mentira? — Absoluta!
— Sim. No Universo grande, flutuamos.
— Somos bolhas d’água avulsas.
— Sangue éter da própria esperança!
— Mentiras absolutamente.
— Vale-se do que é escrito só enquanto se lê o manuscrito.
— E depois acaba tudo.
Ainda manobro últimos instantes, cansado, às pressas, vem a mulher a ter-se a nós, convencida da cura dos males inoportunos e da glória do sono do menino.
In Verdades - 11 abr 2003