quarta-feira, 28 de maio de 2008

Menino só menino

O Escolar - Vincent van Gogh - Museu MASP - SP

Menino só menino
Andar à-toa entre castas sociais
te atormenta a vez e a toda sorte.

Caminhar à fome longe do teu prato,
ao pão escasso do arroz, às carnes,
sementes do feijão da esperança de
alimentar-te do grão, não te faz gosto.

Ao teu sustento o mundo está indiferente.
Ninguém te vê e nem a tua carência à toa.
Vagas, alheio, um dia vadio sem um nome,
sem o sono. Não têm cores os teus sonhos.
Logo o sol se põe, ao vento frio da madrugada.
Tu, ancião da beira da estrada, não tens u’ teto.
Talvez, não tenhas nem um cobertor dos jornais,
das revistas, dos papéis sujos desta ironia, sorte.
A noit’escura te leva à luz dos zonzos vaga-lumes,
tu não tens ombros, por isso, assim, não te choras.
Aos vultos despercebidos, às sombras das estrelas,
acomoda-te, mas te ocultas da pancada delinqüente.

Lêem-se amanhã as notícias piedosas em manchetes
avulsas ao prestígio dos transeuntes frios a ti curiosos.
Sede, menino, o crítico mudo dos estrábicos marginais.

In Verdades - mai 2008

quinta-feira, 22 de maio de 2008

AÇAÍ


http://www.amazonia.org.br/ - Açaí recolhido da batedeira

Crônica do Açaí

"Sereno Rio Jaburu Depoimento: A longa viagem até a comunidade de São João do Jaburu foi chuvosa e turbulenta, mas ao chegarmos fomos recompensados por este belo final de tarde no tranqüilo Rio Jaburu, e por um delicioso jantar preparado por Dona Maria Lúcia à base de peixe, camarão, farinha e açaí. (19/03/2004)" http://www.amazonia.org.br/

Quanta vez já me dei conta andando pelas ruas da cidade ou em galerias de shoppings de grande movimentação, ter lido em tabuletas as virtudes do vinho de açaí. Que eu saiba, essa frutinha roxa tem delicioso sabor desde a minha infância. Eu me lembro que quando bebia o vinho de açaí com farinha de mandioca torradinha cujos grãos estalavam nos meus dentes, não sentia mais fome nenhuma, durante todo o dia. Bebia-se em vez acompanhado das refeições, à noite dormia-se de barriga cheia e satisfeita. Muitas famílias nesse tempo e ainda hoje se alimentam de açaí e farinha d’água em uma poção, de um azul-escuro com nuance marinho. Já li em alguma estatística oficial que o índice de anemia em crianças da região ribeirinha é baixo devido o teor do composto natural e saboroso do açaí. Pois, é assim mesmo, meu caro e bom amigo, o povo da região, ora bebe açaí, ora bebe abacaba, suco natural de certas palmeiras nativas da Amazônia, ou suco de taperebá ou de murici, frutinhas saborosíssimas e ainda come pupunhas cozidas ao café da manhã, à falta do pão e do leite.

Li ainda pouco numa tabuleta frente a uma escola de 3° grau, aqui nas redondezas do centro da cidade, bairro da Liberdade, que uma poção de açaí é milagrosa, equivale por não sei quanto de teor vitamínico necessário à energia do organismo, é pura fonte de proteína ao frescor da bela idade juvenil. Peça o suco servido em cuia, tigela própria para se servir da poção mágica da fruta do momento: prove o açaí verdadeiro, dizia a tabuleta. Um dia desses, passeava pelo shopping center, então, resolvi experimentar a tal poção: o moço que me atendeu garantiu que o produto era da melhor qualidade, pois, logo me perguntou como eu queria beber o açaí, se queria com granulados de chocolates, com charutinhos de waffe caramelados, chantili, leite de coco, etc., ou se com sabor de acerola. - Fiquei imaginando, puxa vida! - Quanta opção! O que fizeram com o açaí! Fiquei pensando e pensando e, então, resolvi pedir a iguaria acompanhada com farinha de mandioca, aquela amarelinha e bem torradinha made in Cucurunã. O moço me olhou bem, sorriu timidamente e me disse que não me entendeu, assim como, eu também não o havia entendido, mesmo assim pedi que me servisse à moda da casa, a que tivesse mais saída.

- Prontamente senhor: aqui está o seu açaí! Bom proveito. – Obrigado.
Pois é, meu caro amigo! Provei o açaí que não tinha gosto de açaí, e além de todos os sabores imagináveis ainda havia “borra de café coado em filtro de pano”, tinha sensação de que eu engolia pó de café ou areia fina, cristais de açúcares insolúveis. Imediatamente chamei o moço uniformizado e de “quepe” de soldado, em detalhes vermelho e branco, camisa branca com detalhes vermelhos a cor da calça e tênis à moda jovem rebelde. - Pois não senhor, em que posso ajudá-lo? - Isso que o senhor me serviu é açaí, mesmo? - Sim, senhor, é açaí! - Todo mundo gosta, bebe essa “iguaria”, acha o máximo e sai daqui feliz. - Veja quanta gente vem experimentar o suco. - Veja quanta gente jovem e bonita e descontraída bebe açaí! - Pois, muito bem! - Então, perguntei do moço: - o senhor já bebeu açaí? - Claro! Bebo sempre que posso ou quando sobra nas tigelas, né? - É. Eu sei como é essa coisa, respondi. - Responda-me uma outra coisa, - pois não senhor! - O seu chefe ou encarregado de serviço ou se possível o seu gerente, posso falar com um deles? - Mas o que foi senhor, não ficou satisfeito? - Não. Não é nada disso, mas gostaria de dar só uma palavrinha com o seu gerente. É possível? Indaquei-o.

Nem demorou, veio o gerente. - Pronto senhor, em que posso ajudá-lo?
- Bem, eu li a tabuleta e todo esse marketing sobre o açaí, tomei a coragem e resolvi provar tal fantástica iguaria. - Então, o senhor não gostou? - Não, não, senhor Gerente, não é isso não! - Mas acho que não me serviram o açaí, porque eu havia pedido à moda da casa, cheguei até pensar que estava numa filial de algum quiosque de Belém ou Santarém ou até mesmo de Manaus, pois me enganei redondamente: açaí nesses lugares tem gosto de açaí, bebe-se em tigela-cuia com ou sem farinha, o senhor conhece a farinha d’água ou a de tapioca? - Não, não conheço essas farinhas. - Pois é senhor gerente, o seu produto não é açaí. - Pode até ser um concentrado de essência de pouco cheiro da fruta deliciosa, decorada com melaço colorido, para agradar crianças e jovens à mercê das “modices passageiras”, pois, para qualquer paraense que passe por aqui a provar a sua “coqueluche” irá esconjurá-la. - Quanto custa essa marmota? Meio sem jeito, respondeu-me educadamente o gerente: - Bem, se é assim, senhor, não lhe custa nada. – obrigado.

Melhor para mim, porém, já sentia a rejeição do estômago a tal sedução pelo gosto da saudade, tristes saudades dos quiosques das tardes quentes de Manaus e de Santarém – distante Amazônia. Portanto, meu caríssimo amigo, não se deixe levar pelo saudosismo, uma vez, disse um poeta da daqui –Concretista- Décio Pignatari: Beba coca cola / Babe cola / ... / cloaca.

In Verdades - Textos reunidos - 21 mar 2006

sexta-feira, 16 de maio de 2008

Contos dos Sóis II

Foto: Galleryviewer
Amazônia paulistana
In memoriam aos meus pais, saudades dos meus irmãos.
Janelas abertas
Parte I

Ainda menino, naquela época, usava-se calças curtas com suspensórios. Hábito comum à criança da minha idade. Meu pai, homem simples, trabalhador, aventureiro, 14 filhos, sonhava dias melhores para os seus meninos. Numa dessas oportunas aventuras, arribou-se já de Manaus-Am nas asas da “Paraense Transportes Aéreos – ‘Douglas DC4­­­­­­­-PTA’”, acho que deveria ser esse o nome da aeronave, 9 horas de vôo. Lembro-me do meu saudoso Tadeu, irmão querido e briguento, meu defensor, que ao meu lado entre as nuvens no céu voavamos, num frio danado, e enrolado num cobertor de “feltro”, ficara permanentemente pálido e mudo, enquanto os outros dormiam o sono inercial da aventura das aves migratórias.

Novembro de 1963 – Congonhas – Planalto de Piratininga. Ainda não esqueci a última pergunta da moça de sotaque diferente, alta e de cabelos presos, ao meu pai: “o senhor vai para o Rio de Janeiro ou vai ficar em São Paulo?”, que coisa mais estranha o tom da voz da aeromoça!

Começava a minha aventura, 13 anos, o sol amarelado naquelas manhãs do novo mundo. Os meninos da minha idade de faces coradas pareciam personagens de filme em qualquer tempo de matinês, farwest americano, eram para mim muito curioso. Cadê os rios, os igarapés? Cadê as chuvas, as árvores grandes, as mangueiras carregadas de frutos nas avenidas, ao vento das tardes em temporais, e as canoas à vela da minha cidade, e os mares doces onde estão? Agora, tão distante, eu corria atrás da bola, pois, outros tempos começavam. Ainda se ouvia suspiros de torcidas rivais de time de futebol em brincadeiras de meninos que gritavam gol! As cores verde e branca foram a minha primeira impressão. Aderi às cores verdes de então. Meu pai às cores do trabalho. Mamãe esperou até abril e pariu o caçula. Meus irmãos ganhavam impulsos e saíam correndo atrás das oportunidades e da vida.

Na cidade, às tardes garoavam, as noites eram frias. As manhãs amanheciam cobertas de névoas e de um ventinho gelado. Eu caminhava à escola bem cedinho com outros meninos, e ouvíamos prenúncios de rumores de política nova, tempos duros e agourentos. Aqui do centro histórico da Praça da Sé, eu via o vai-e-vem de gente apressada, distribuída por corredores entre ruas e fachadas antigas, imagens de Charles Chaplin - ­Carlitos - Tempos Modernos, que se esvaeciam. Rua Direita, 15 de Novembro, Boa Vista. Ruas lotadas de rostos indiferentes que não se viam. General Carneiro, 25 de Março e Ladeira do Porto Geral – histórias que me confundiam. Do Parque Dom Pedro II surgia gente vindo de todos os cantos da cidade. O ônibus que me trazia até a Sé, esquina Roberto Simonsen, durante um percurso de 45 minutos, cobrava do usuário CR$0,30, hoje não tenho noção do quanto vale ou valeria esse valor, talvez, R$2,30 ou a tarifa de então.

Seguia-se o aprendiz de qualquer coisa, atendia as chamadas telefônicas e despachava “peruas”, carro médio, transportes utilitários de cargas pequenas. Nos intervalos, eu saía da Rua da Glória, 603, porta a porta a distribuir panfletos da entregadora do senhor “Garrido”, um espanhol gordo e divertido que enquanto aguardava as chamadas, divertia-se com os outros motoristas a jogar dominó aos gritos e palavrões. Andar pelas ruas ­­­- eterno vagabundo -, eu gostava, assim conhecia e assistia a cidade crescer. Descia a Rua do Lavapés, subia a Lins de Vasconcelos até a Aclimação, Vila Mariana, descia a Rua Vergueiro até o Paraíso. À Padaria Viana, às vezes, com qualquer trocado, eu comia um pãozinho com café-com-leite e, ainda na volta, caso sobrasse panfletos, jogava-os riacho-abaixo no córrego da atual Rua 23 Maio. Como era cansativo sob sóis do meio-dia retornar a pé à Rua Glória.

Quase todos os dias era a mesma ladainha. Bom Retiro, Moóca, Braz, Belém: saudades da minha terra, Santarém, cuja capital conhecia de ouvinte. Na volta, o bonde quando eu tinha algumas moedas, quando não, a passos longes, pagava a minha penitência. Descia a Rua da Moóca, Glicério, Conselheiro Furtado e a Rua da Glória. A Liberdade já prenunciava traços e movimentos de asiáticos. Eu via a cidade ficar populosa. Na hora do almoço, comia pão com mortadela esquentada na chapa, bebia refrigerante “tubaína”, porque me lembrava a cor do fruto do guaraná da Amazônia, castanho-escura e, enchia a barriga de energia precária. Quanta história faz um imigrante na metrópole paulistana!

Eu tinha uma visão glamurosa de certos pontos da cidade. Hoje penso que era devido a humildade trazida da minha criação na Amazônia. Bráulio Gomes, Sete de Abril, do cinema que sumiu. Galerias, Nova Barão, Ipê, Metrópoles, Cine Lido da Rua Dom José de Barros, do Colégio Caetano de Campos da República. Eu me lembro de uma vez ter comprado o peixe pirarucu em postas salgadas na “Casa Godinho” da Rua Líbero Badaró, embrulhadinho que nem bacalhau seco. Foi uma festa quando cheguei a minha casa. Depois, sumiu o peixe da prateleira, não mais o vi à venda.

Certa vez, fugindo da chuva e da enchente do Tamanduateí, adormeci sob a guarida da Secretaria da Fazenda junto com outros meninos colegas de trabalho da firma “Instituto de Ótica Mino Lens”, quando baixou "a maré”, margeei a Avenida do Estado rumo à zona leste, destino Vila Industrial, bairro distante de todos. Não me lembro a hora da noite que cheguei a casa. Outros dias vieram à encomenda do progresso, os bate-estacas, as britadeiras e as picaretas arrancavam trilhos dos bondes do chão de paralelepípedos das ruas do centro da cidade. Certo dia, o Edifício Mendes Caldeira implodiu, com ele se foi o Cine Santa Helena. Curiosamente, como havia moços de fretes, comércio de alugueres promíscuos à porta do cinema. Na Padaria Santa Tereza da Praça João Mendes Junior, havia variedades de doces e de salgadinhos tentadores, e aroma de café com leite. Quando restava um dinheirinho, eu bebia uma canja quente de galinha, era meu almoço. Parecia que a cidade era mais fria. Eu tinha muita saudade do calor úmido de Manaus e de Santarém.

Sob o Viaduto do Chá, havia a “Liga das Senhoras Católicas” que servia comida a preços convidativos aos que contavam as moedas para almoçar. Alguns insatisfeitos comentavam entre outros “boys” que a carne era de gatos que ficavam a reverenciar as estátuas do jardim mal cuidado do Vale do Anhangabaú. Rui Barbosa era o mais cortejado. Parecia que os coitadinhos exigiam do patrono um habeas corpus para suas vidas efêmeras.

Houve fevereiro grandioso no MVNICIPAL, no início dos anos 70, trabalhei de aprendiz de eletrônica e de iluminação decorativa, para o baile de carnaval que a firma havia feito a iluminação e a decoração do baile de gala. Pulei, pulei e pulei de smoke, alugado pela Atimil Ltda., eu puxava fios elétricos e controlava as luzes coloridas. Foi um carnaval e tanto. Outra vez, provei uma sopa de cebola na Estação Rodoviária da Luz. Da estação peguei um ônibus-leito e acordei nas serras de Caxias do Sul e depois Novo Hamburgo, numa feira de couro e sapatos. Naqueles tempos, muita gente chegava a São Paulo. A cidade era uma metamorfose em expansão. Encontrar-se aqui fazia a diferença. Os sotaques do Brasil, português-ítalo que restou das penínsulas dos além mares. Sou paulista-paraense que aprendi a comer spaghetti e frango al sugo e apreciar os tintos, à noite pizza. Hoje, tenho Lucia companheira e Enzo, um menino sadio e belo que aos pouquinhos tentam apreciar o açaí, tacacá, tucupi “taído”, quando encontro às saudades. Mais ainda não vimos de perto os suplícios do Círio de Nazaré nem a romaria de Nossa Senhora de Fátima!

In Verdades - textos reunidos 2005

quinta-feira, 8 de maio de 2008

Contos dos sóis I

Foto: Ronaldo Ferreira - Lago Grande - SantarémPA
In memoriam aos meus pais, saudades dos meus irmãos.
Janelas abertas
Parte II
Do sobradinho da Avenida Paulo Pereira de Queirós, 89 — tenho muitas lembranças da casa dos Viana Martins. Todas boas. Ruins nenhuma, porque esquecia das coisas que não gostava, quase sempre ficavam sem registros. No início dos anos 80, mudamos para uma casa maior, onde vivi dezesseis anos. Num pequeno pedaço de terra do quintal, no canto direito do sobrado, cresceu um pé de abacateiro que ficou bem copado, floriu e produziu algumas gerações de frutos até metade dos anos 90. Papai foi quem plantou a espécie, um dia, lembro-me com ternura, ele enterrou o caroço da fruta que mais apreciava. Era docemente cultural observá-lo a cultivar, comer abacate, então, era-lhe o doce preferido! Logo, não demorou, a árvore cresceu e deu frutos, e se tornou o meu mirante favorito, e abrigo aconchegante dos passarinhos das manhãs e das tardes quentes de verão, bem-te-vis, pardais, algumas pepiras, xexéus e beija-flores também, porque mamãe havia plantado algumas roseiras ao redor do abacateiro.

Havia harmonia e equilíbrio perfeito naquele sobradinho. Cumplicidade é o melhor termo para definir o que de fato havia entre os membros daquela pequena casa dos Viana Martins. Construída numa área pequena, que tirado a planta do sobrado muito pouca terra sobrara. Nesse cantinho ficava o abacateiro próximo ao muro de arrimo com a avenida, que numa curva acentuada à esquerda acompanhava a silhueta paralela do edifício à extensão do terreno. Mamãe regava as flores, alimentava um jabuti, ora, então, um filhote de papagaio e de arara, que comprara às escondidas de uma infratora do IBAMA.

As aves cresciam e tagarelavam e gritavam ao verem o tempo verdugo se aproximar de suas existências e do casco sujo e carcomido do jabuti. Mamãe entrava e saía, ora subia e descia, ora cantarolava — senhora das situações, vivia. Ainda hoje eu escuto mamãe cantarolando na minha cabeça de fios de cabelos grisalhos. Guardei algumas modinhas de cor. E quando estou mais feliz, muito absorto, canto-as, quando menos feliz, tenho saudades desse tempo agora mítico.

Nos passos de papai, via o tempo se aproximar mais acelerado. Aposentado, dormia cedo e pernoitava as madrugadas. Mamãe dormia mais tarde, porque apreciava o sono leve e a vida da tarde lenta, às vezes quente, de verão. O tempo já lhe pregava peças da existência e da realidade poluída contemporânea.

Amanhecia... Antes d’eu sair de casa para o trabalho, ouvia o canto dos passarinhos vindo do minúsculo pomar: as maritacas em bando gritavam, os beija-flores pairavam ao néctar das rosas, os bem-te-vis brincavam no pé do abacateiro. Papai nem esperava o sol nascer, ainda escuro, cedinho preparava o café e o leite fervido, o pão ainda estava quentinho, era sempre o primeiro freguês da padaria. Não me lembro ter saído para trabalhar sem ter tomado o café com leite e pão com margarina. Papai preferia manteiga salgada, aquela da lata fazendeiro. Nesse tempo a dedicação de papai a mim não tinha preço que a pagasse. Eu precisaria esperar meu Enzo crescer e me aperceber de tal competência. Tudo era simples e bonito. O dia a dia da nossa casa era assim contínuo: amanhecia, entardecia e anoitecia; novidade só para quem quisesse perceber novidades. Depois da meia-noite eu chegava, o meu prato-feito estava pronto sobre o fogão ou na geladeira, às vezes, nem requentava embora mamãe descesse de seu quarto. “- Bença”, mãe! – Deus te abençoe! Eu evitava sempre incomodá-la, pegava o prato e ia para a sala assistir o jornal na televião enquanto comia assistindo os resumos das notícias do dia, assim eu fazia a digestão, então amanhecia. Todos os dias eram assim:

- Depois da refeição e dos afazeres domésticos, mamãe gostava de andar pelas vizinhanças, enquanto papai tirava sua sesta, balançando-se em uma rede armada na cozinha. Dormia cercado de animais: um cachorro, um loro mal-criado e, algumas aves domésticas, inclusive dois ou três patos que sujavam a cozinha. Por longo tempo presenciei e ouvi muitas histórias de família. Às vezes, papai dizia que “viajava” todos os dias para Santarém enquanto embalava-se na inércia do meio-dia. A dona Lourdes o chamava de tolo e sujo, esbravejando-se: - sai do meio da casa! - Quanta sujeira! Não és tu quem lava! Ainda ouço o eco de sua indignação momentânea.

Na área livre, da lavanderia, paralelo ao muro, saía uma corda de varal de roupas que papai esticara até uma entradinha de um portão à tramela próxima do abacateiro. Um dia, desses mornos e preguiçosos, enquanto papai fazia um cafuné na “laica”, cachorra dócil, sentado sob a corda do varal, passava o equilibrista loro -”corrupto”-, alusão a um cunhado que se passava por esperto, eu disfarçava e dizia: que era uma alusão a maluf, político muito conhecido da população de São Paulo -, mirou-se perpendicularmente sobre a cabeça de papai e caiu inerte. Suicidou-se! - Lourdes! – Lourdes! Vem aqui ver uma coisa! - Corre! O corrupto morreu! - Quem? - o maluf? -Não! - o corrupto, o loro, - Corre! Corre!

Foi uma consternação só. O mal-criado verde-amarelo pagou com a língua: havia comido “racuim”, um veneno contra ratos que papai guardava na prateleira da lavanderia na qual o corrupto tagarela tinha acesso livremente, “achou” que fosse alpiste, talvez, e o comeu. Os vizinhos mais próximos foram avisados. Acompanharam o sepultamento num terreno baldio da prefeitura d’outro lado da rua. Até eu fiquei às lágrimas, longe e solidário, da minha janela à vida tudo perece assim.

A arara foi uma doação de um outro genro, atração à parte, ficou bonita, mas um dia assustou-se e bateu asas e nunca mais voltou, mas ficou a saudade. A cadela durou mais um tempo, ficou preguiçosa e sardenta. Morreu asfixiada pela maldade alheia.

Logo, papai conseguiu outro filhote de cão pastor, “mamute”. Não me lembro de quem foi o presente, acho que foi de outro cunhado próspero -Pitanguy -, e o criou com toda dedicação. O jabuti, coitado! Arrastava-se sob sol à chuva ou frio. Tinha o pescoço magro, ficou mais lento. Sobrevivia à custa de folhas de alface e bananas, verduras e frutas prediletas de papai, além de abacates. Cansei de vê-los dormindo ao mesmo tempo, papai em sua rede que trouxera de Belém de seu último passeio entre os anos de 91 e 92. O jabuti, não se sabe que fim levou, possivelmente, tenha perecido com o abacateiro. O canto dos passarinhos, os gorjeios silenciaram-se. A harmonia e o equilíbrio da casa ficaram em pé, por mais tempo. “Mamute”, o cão, cresceu e assumiu o posto de guardião do sobrado, mais tarde, também foi asfixiado com bolinhos de carne e possivelmente areia de vidro por malvados alheios.

O seu Silvio adiantou-se à velhice. Octogenário e sadio, mas se sentia entediado e saudoso de lembranças longínquas de Santarém, terra natal. Muitas coisas o incomodavam, mas ficava feliz com a presença dos filhos reunidos em volta à mesa. O almoço dos domingos sempre eram movimentados. Do meu quarto, ouvia-se as tagarelices de meus irmãos, às vezes, alterados por bebidas em excesso. Eu descia e explodia em discursos moralistas e a festa acabava. Claro que eu era sempre o vilão! Várias vezes isso acontecera, coisas de muitos, 14, irmãos! Eu tinha 49 anos. Vi o último dezembro e janeiro entre fogos de artifícios pipocando no céu, os anos 90 iam-se fechando, eu tinha os meus desejos definidos, mas distantes, e sobre o parapeito da minha janela ou debruçado sobre o muro do portão, via o meu horizonte nas luzes e nas estrelas do céu e, no último janeiro dos 90’ me casei, sem festa, só um almoço bem simples na casa de minha sogra, italianos convictos, para os padrinhos e minha mãe, papai me abençoou, mas não quis participar do almoço, sempre dizia não gostar de festas, embora não houvesse a tal festa que o imaginava.

Dezembro 25 - Natal - 99, mamãe teve um mal súbito. Muita coisa mudou por lá. Depois outros males súbitos apareceram. Mamãe ainda viu o neto caçula nascer. Um ano e sete meses depois, mamãe partiu. Seu corpo como era de seu desejo, disse-me uma das irmãs, Vitória, no velório do Hospital do Servidor Público, queria que fosse cremada em Vila Alpina. Suas cinzas jogadas ao mar, também era de seu desejo. Guardo a última imagem da família e de amigos reunidos em torno do ataúde sobre a Câmara Ardente. In memoriam, pedi à Administração que executassem um réquiem em homenagem à sabedoria e à vida.

Papai, 85 anos, muito se angustiou, perdera-lhe o sentido à vida, sessenta e dois anos de união pereciam num tempo contínuo e sem fim. Oito meses depois, deprimido, fez-se doente e indiferente a tudo. Eu disse muitas vezes para alguns irmãos que o visitara no Hospital que papai era um homem resignado à vida. Um dia, à noite de domingo, partiu para a aventura final. Foi sepultado na segunda-feira no Cemitério de Vila Alpina.

Faz três anos de seu sepultamento, mas ainda está incompleta a minha missão. Devo pedir a exumação do espólio, dessa brava gente, e com o mesmo propósito e o mesmo fim que demos aos espólios de mamãe, cremá-lo. Hoje, 25 de julho de 2005, junto com quatro irmãos, Sinésio, o mais velho, "cecílio", "nando", Bento e eu, assistimos a exumação de papai, e de comum acordo com os demais, pedi a cremação. Pegarei as cinzas 5 de agosto. Hoje, como fiz de tantas vezes esse percurso, transporto as cinzas de papai, tenho a sensação d’uma viagem insólita, aos olhos vêm-me as lágrimas d’um tempo vazio, levo de volta a casa as saudades de papai num ataúde minúsculo e lacrado aos olhos. Um dos irmãos -"cecílio"- pediu e se ofereceu para espalhar as cinzas ao mar das lembranças de mamãe e da eterna criação de Deus. Guardo as lembranças dessas vidas queridas, a mamãe e a papai todas as honras. Perdas irreparáveis, eternas saudades, ainda ao tempo que terei de esperar o meu fim, porque penso no tempo do sem-fim enquanto pereço todos iguais.


In Verdades -textos reunidos 2005