quinta-feira, 8 de maio de 2008

Contos dos sóis I

Foto: Ronaldo Ferreira - Lago Grande - SantarémPA
In memoriam aos meus pais, saudades dos meus irmãos.
Janelas abertas
Parte II
Do sobradinho da Avenida Paulo Pereira de Queirós, 89 — tenho muitas lembranças da casa dos Viana Martins. Todas boas. Ruins nenhuma, porque esquecia das coisas que não gostava, quase sempre ficavam sem registros. No início dos anos 80, mudamos para uma casa maior, onde vivi dezesseis anos. Num pequeno pedaço de terra do quintal, no canto direito do sobrado, cresceu um pé de abacateiro que ficou bem copado, floriu e produziu algumas gerações de frutos até metade dos anos 90. Papai foi quem plantou a espécie, um dia, lembro-me com ternura, ele enterrou o caroço da fruta que mais apreciava. Era docemente cultural observá-lo a cultivar, comer abacate, então, era-lhe o doce preferido! Logo, não demorou, a árvore cresceu e deu frutos, e se tornou o meu mirante favorito, e abrigo aconchegante dos passarinhos das manhãs e das tardes quentes de verão, bem-te-vis, pardais, algumas pepiras, xexéus e beija-flores também, porque mamãe havia plantado algumas roseiras ao redor do abacateiro.

Havia harmonia e equilíbrio perfeito naquele sobradinho. Cumplicidade é o melhor termo para definir o que de fato havia entre os membros daquela pequena casa dos Viana Martins. Construída numa área pequena, que tirado a planta do sobrado muito pouca terra sobrara. Nesse cantinho ficava o abacateiro próximo ao muro de arrimo com a avenida, que numa curva acentuada à esquerda acompanhava a silhueta paralela do edifício à extensão do terreno. Mamãe regava as flores, alimentava um jabuti, ora, então, um filhote de papagaio e de arara, que comprara às escondidas de uma infratora do IBAMA.

As aves cresciam e tagarelavam e gritavam ao verem o tempo verdugo se aproximar de suas existências e do casco sujo e carcomido do jabuti. Mamãe entrava e saía, ora subia e descia, ora cantarolava — senhora das situações, vivia. Ainda hoje eu escuto mamãe cantarolando na minha cabeça de fios de cabelos grisalhos. Guardei algumas modinhas de cor. E quando estou mais feliz, muito absorto, canto-as, quando menos feliz, tenho saudades desse tempo agora mítico.

Nos passos de papai, via o tempo se aproximar mais acelerado. Aposentado, dormia cedo e pernoitava as madrugadas. Mamãe dormia mais tarde, porque apreciava o sono leve e a vida da tarde lenta, às vezes quente, de verão. O tempo já lhe pregava peças da existência e da realidade poluída contemporânea.

Amanhecia... Antes d’eu sair de casa para o trabalho, ouvia o canto dos passarinhos vindo do minúsculo pomar: as maritacas em bando gritavam, os beija-flores pairavam ao néctar das rosas, os bem-te-vis brincavam no pé do abacateiro. Papai nem esperava o sol nascer, ainda escuro, cedinho preparava o café e o leite fervido, o pão ainda estava quentinho, era sempre o primeiro freguês da padaria. Não me lembro ter saído para trabalhar sem ter tomado o café com leite e pão com margarina. Papai preferia manteiga salgada, aquela da lata fazendeiro. Nesse tempo a dedicação de papai a mim não tinha preço que a pagasse. Eu precisaria esperar meu Enzo crescer e me aperceber de tal competência. Tudo era simples e bonito. O dia a dia da nossa casa era assim contínuo: amanhecia, entardecia e anoitecia; novidade só para quem quisesse perceber novidades. Depois da meia-noite eu chegava, o meu prato-feito estava pronto sobre o fogão ou na geladeira, às vezes, nem requentava embora mamãe descesse de seu quarto. “- Bença”, mãe! – Deus te abençoe! Eu evitava sempre incomodá-la, pegava o prato e ia para a sala assistir o jornal na televião enquanto comia assistindo os resumos das notícias do dia, assim eu fazia a digestão, então amanhecia. Todos os dias eram assim:

- Depois da refeição e dos afazeres domésticos, mamãe gostava de andar pelas vizinhanças, enquanto papai tirava sua sesta, balançando-se em uma rede armada na cozinha. Dormia cercado de animais: um cachorro, um loro mal-criado e, algumas aves domésticas, inclusive dois ou três patos que sujavam a cozinha. Por longo tempo presenciei e ouvi muitas histórias de família. Às vezes, papai dizia que “viajava” todos os dias para Santarém enquanto embalava-se na inércia do meio-dia. A dona Lourdes o chamava de tolo e sujo, esbravejando-se: - sai do meio da casa! - Quanta sujeira! Não és tu quem lava! Ainda ouço o eco de sua indignação momentânea.

Na área livre, da lavanderia, paralelo ao muro, saía uma corda de varal de roupas que papai esticara até uma entradinha de um portão à tramela próxima do abacateiro. Um dia, desses mornos e preguiçosos, enquanto papai fazia um cafuné na “laica”, cachorra dócil, sentado sob a corda do varal, passava o equilibrista loro -”corrupto”-, alusão a um cunhado que se passava por esperto, eu disfarçava e dizia: que era uma alusão a maluf, político muito conhecido da população de São Paulo -, mirou-se perpendicularmente sobre a cabeça de papai e caiu inerte. Suicidou-se! - Lourdes! – Lourdes! Vem aqui ver uma coisa! - Corre! O corrupto morreu! - Quem? - o maluf? -Não! - o corrupto, o loro, - Corre! Corre!

Foi uma consternação só. O mal-criado verde-amarelo pagou com a língua: havia comido “racuim”, um veneno contra ratos que papai guardava na prateleira da lavanderia na qual o corrupto tagarela tinha acesso livremente, “achou” que fosse alpiste, talvez, e o comeu. Os vizinhos mais próximos foram avisados. Acompanharam o sepultamento num terreno baldio da prefeitura d’outro lado da rua. Até eu fiquei às lágrimas, longe e solidário, da minha janela à vida tudo perece assim.

A arara foi uma doação de um outro genro, atração à parte, ficou bonita, mas um dia assustou-se e bateu asas e nunca mais voltou, mas ficou a saudade. A cadela durou mais um tempo, ficou preguiçosa e sardenta. Morreu asfixiada pela maldade alheia.

Logo, papai conseguiu outro filhote de cão pastor, “mamute”. Não me lembro de quem foi o presente, acho que foi de outro cunhado próspero -Pitanguy -, e o criou com toda dedicação. O jabuti, coitado! Arrastava-se sob sol à chuva ou frio. Tinha o pescoço magro, ficou mais lento. Sobrevivia à custa de folhas de alface e bananas, verduras e frutas prediletas de papai, além de abacates. Cansei de vê-los dormindo ao mesmo tempo, papai em sua rede que trouxera de Belém de seu último passeio entre os anos de 91 e 92. O jabuti, não se sabe que fim levou, possivelmente, tenha perecido com o abacateiro. O canto dos passarinhos, os gorjeios silenciaram-se. A harmonia e o equilíbrio da casa ficaram em pé, por mais tempo. “Mamute”, o cão, cresceu e assumiu o posto de guardião do sobrado, mais tarde, também foi asfixiado com bolinhos de carne e possivelmente areia de vidro por malvados alheios.

O seu Silvio adiantou-se à velhice. Octogenário e sadio, mas se sentia entediado e saudoso de lembranças longínquas de Santarém, terra natal. Muitas coisas o incomodavam, mas ficava feliz com a presença dos filhos reunidos em volta à mesa. O almoço dos domingos sempre eram movimentados. Do meu quarto, ouvia-se as tagarelices de meus irmãos, às vezes, alterados por bebidas em excesso. Eu descia e explodia em discursos moralistas e a festa acabava. Claro que eu era sempre o vilão! Várias vezes isso acontecera, coisas de muitos, 14, irmãos! Eu tinha 49 anos. Vi o último dezembro e janeiro entre fogos de artifícios pipocando no céu, os anos 90 iam-se fechando, eu tinha os meus desejos definidos, mas distantes, e sobre o parapeito da minha janela ou debruçado sobre o muro do portão, via o meu horizonte nas luzes e nas estrelas do céu e, no último janeiro dos 90’ me casei, sem festa, só um almoço bem simples na casa de minha sogra, italianos convictos, para os padrinhos e minha mãe, papai me abençoou, mas não quis participar do almoço, sempre dizia não gostar de festas, embora não houvesse a tal festa que o imaginava.

Dezembro 25 - Natal - 99, mamãe teve um mal súbito. Muita coisa mudou por lá. Depois outros males súbitos apareceram. Mamãe ainda viu o neto caçula nascer. Um ano e sete meses depois, mamãe partiu. Seu corpo como era de seu desejo, disse-me uma das irmãs, Vitória, no velório do Hospital do Servidor Público, queria que fosse cremada em Vila Alpina. Suas cinzas jogadas ao mar, também era de seu desejo. Guardo a última imagem da família e de amigos reunidos em torno do ataúde sobre a Câmara Ardente. In memoriam, pedi à Administração que executassem um réquiem em homenagem à sabedoria e à vida.

Papai, 85 anos, muito se angustiou, perdera-lhe o sentido à vida, sessenta e dois anos de união pereciam num tempo contínuo e sem fim. Oito meses depois, deprimido, fez-se doente e indiferente a tudo. Eu disse muitas vezes para alguns irmãos que o visitara no Hospital que papai era um homem resignado à vida. Um dia, à noite de domingo, partiu para a aventura final. Foi sepultado na segunda-feira no Cemitério de Vila Alpina.

Faz três anos de seu sepultamento, mas ainda está incompleta a minha missão. Devo pedir a exumação do espólio, dessa brava gente, e com o mesmo propósito e o mesmo fim que demos aos espólios de mamãe, cremá-lo. Hoje, 25 de julho de 2005, junto com quatro irmãos, Sinésio, o mais velho, "cecílio", "nando", Bento e eu, assistimos a exumação de papai, e de comum acordo com os demais, pedi a cremação. Pegarei as cinzas 5 de agosto. Hoje, como fiz de tantas vezes esse percurso, transporto as cinzas de papai, tenho a sensação d’uma viagem insólita, aos olhos vêm-me as lágrimas d’um tempo vazio, levo de volta a casa as saudades de papai num ataúde minúsculo e lacrado aos olhos. Um dos irmãos -"cecílio"- pediu e se ofereceu para espalhar as cinzas ao mar das lembranças de mamãe e da eterna criação de Deus. Guardo as lembranças dessas vidas queridas, a mamãe e a papai todas as honras. Perdas irreparáveis, eternas saudades, ainda ao tempo que terei de esperar o meu fim, porque penso no tempo do sem-fim enquanto pereço todos iguais.


In Verdades -textos reunidos 2005

12 comentários:

Anônimo disse...

Olá, gde professor Simão, parece que estou ouvindo vc falar sobre os "causos" da vida. Pouca gente tem muita história pra contar, você, pode-se dizer é um deles. História que vale de verdade um "Conto dos Sóis". Parabéns!!

bj do amigo.

Anônimo disse...

Amigo Simão, caro professor! é muito bom saber e conhecer de suas andanças, que bom, pois não são macabras, não estão na mídia, estão somente nas suas lembranças de pura emoção...
um abraço,
Alde

Anônimo disse...

Caro amigo Simão emocionei-me às lágrimas.

abraço,
Mauro Dianes

Unknown disse...

show de bola, parabéns pelo talento!

Anônimo disse...

Olá Simão,

Li a sua história em arvoresdosimão. Confesso que me emocionei bastante pois era impossível que
eu não fosse remetido às minhas próprias lembranças. Na verdade, parece ser uma lei qualquer das
ciências exatas: Na medida que nossa idade avança, mais nos vemos rebuscando nossas reminiscências do passado. Eu acho isso mágico. Explica o fenômeno da transmissão da herança cultural. Em outras palavras, temos mesmo que resgatar experiências vividas e deixa-las para que os mais jovens (nossos filhos) se apercebam de que "há um sentido na vida".

abraço

Mauro Pereira da Silva disse...

Professor Simão Viana: este texto é uma aula de prosa, da boa prosa, que alguns astros de nossa literatura parece que se esqueceram.
Nada como um texto simples, mas profundo na essência. Um texto nostálgico, um texto que nos faz também ter nossas recordações. Parabéns, amigo. Ainda quero ver outro livro, este só de prosa.

flor disse...

Bom dia Caríssimo Simão.
Emocionante seu texto.
Suas experiências e lembranças fizeram-me sentir saudades. É tão rico em detalhes que posso vê-las, às tuas, às minhas vivências, como num filme. Adorei!
Abraços no seu coração
Flor

RENATA CORDEIRO disse...

Que árvore cheia de frutos! E nos parecemos, pois sou formada em filosofia. Achei esse seu post lindo.
Visite-me:
wwwrenatacordeiro.blogspot.com/
não há ponto depois de www
Abraços,
Renata Cordeiro

RENATA CORDEIRO disse...

Claro que permito e esse post seu é muito bonito.
Renata Cordeiro

Anônimo disse...

Muito interessante teu blog! =)

Anônimo disse...

Muito obrigada pela visita ao meu blog!Fico feliz que tenha gostado do mesmo.Sobre o comercial não me recordo dele,é de que data?...É que nasci em 1987...rsrsrs...mais uma vez,grata pela visita. =)

Anônimo disse...

Amigo simão, fantástica e alussiva a sua crônica, narrativa perfeita, penso que as famílias teminam sempre assim com muita saudade, o que diferencia é o narrador da história, às vezes quentes e poético com pitadas de ironias. Valeu navegar na web e te encontrar. Boa sorte, um abraço.
Henrique, Santos-SP.