sexta-feira, 16 de maio de 2008

Contos dos Sóis II

Foto: Galleryviewer
Amazônia paulistana
In memoriam aos meus pais, saudades dos meus irmãos.
Janelas abertas
Parte I

Ainda menino, naquela época, usava-se calças curtas com suspensórios. Hábito comum à criança da minha idade. Meu pai, homem simples, trabalhador, aventureiro, 14 filhos, sonhava dias melhores para os seus meninos. Numa dessas oportunas aventuras, arribou-se já de Manaus-Am nas asas da “Paraense Transportes Aéreos – ‘Douglas DC4­­­­­­­-PTA’”, acho que deveria ser esse o nome da aeronave, 9 horas de vôo. Lembro-me do meu saudoso Tadeu, irmão querido e briguento, meu defensor, que ao meu lado entre as nuvens no céu voavamos, num frio danado, e enrolado num cobertor de “feltro”, ficara permanentemente pálido e mudo, enquanto os outros dormiam o sono inercial da aventura das aves migratórias.

Novembro de 1963 – Congonhas – Planalto de Piratininga. Ainda não esqueci a última pergunta da moça de sotaque diferente, alta e de cabelos presos, ao meu pai: “o senhor vai para o Rio de Janeiro ou vai ficar em São Paulo?”, que coisa mais estranha o tom da voz da aeromoça!

Começava a minha aventura, 13 anos, o sol amarelado naquelas manhãs do novo mundo. Os meninos da minha idade de faces coradas pareciam personagens de filme em qualquer tempo de matinês, farwest americano, eram para mim muito curioso. Cadê os rios, os igarapés? Cadê as chuvas, as árvores grandes, as mangueiras carregadas de frutos nas avenidas, ao vento das tardes em temporais, e as canoas à vela da minha cidade, e os mares doces onde estão? Agora, tão distante, eu corria atrás da bola, pois, outros tempos começavam. Ainda se ouvia suspiros de torcidas rivais de time de futebol em brincadeiras de meninos que gritavam gol! As cores verde e branca foram a minha primeira impressão. Aderi às cores verdes de então. Meu pai às cores do trabalho. Mamãe esperou até abril e pariu o caçula. Meus irmãos ganhavam impulsos e saíam correndo atrás das oportunidades e da vida.

Na cidade, às tardes garoavam, as noites eram frias. As manhãs amanheciam cobertas de névoas e de um ventinho gelado. Eu caminhava à escola bem cedinho com outros meninos, e ouvíamos prenúncios de rumores de política nova, tempos duros e agourentos. Aqui do centro histórico da Praça da Sé, eu via o vai-e-vem de gente apressada, distribuída por corredores entre ruas e fachadas antigas, imagens de Charles Chaplin - ­Carlitos - Tempos Modernos, que se esvaeciam. Rua Direita, 15 de Novembro, Boa Vista. Ruas lotadas de rostos indiferentes que não se viam. General Carneiro, 25 de Março e Ladeira do Porto Geral – histórias que me confundiam. Do Parque Dom Pedro II surgia gente vindo de todos os cantos da cidade. O ônibus que me trazia até a Sé, esquina Roberto Simonsen, durante um percurso de 45 minutos, cobrava do usuário CR$0,30, hoje não tenho noção do quanto vale ou valeria esse valor, talvez, R$2,30 ou a tarifa de então.

Seguia-se o aprendiz de qualquer coisa, atendia as chamadas telefônicas e despachava “peruas”, carro médio, transportes utilitários de cargas pequenas. Nos intervalos, eu saía da Rua da Glória, 603, porta a porta a distribuir panfletos da entregadora do senhor “Garrido”, um espanhol gordo e divertido que enquanto aguardava as chamadas, divertia-se com os outros motoristas a jogar dominó aos gritos e palavrões. Andar pelas ruas ­­­- eterno vagabundo -, eu gostava, assim conhecia e assistia a cidade crescer. Descia a Rua do Lavapés, subia a Lins de Vasconcelos até a Aclimação, Vila Mariana, descia a Rua Vergueiro até o Paraíso. À Padaria Viana, às vezes, com qualquer trocado, eu comia um pãozinho com café-com-leite e, ainda na volta, caso sobrasse panfletos, jogava-os riacho-abaixo no córrego da atual Rua 23 Maio. Como era cansativo sob sóis do meio-dia retornar a pé à Rua Glória.

Quase todos os dias era a mesma ladainha. Bom Retiro, Moóca, Braz, Belém: saudades da minha terra, Santarém, cuja capital conhecia de ouvinte. Na volta, o bonde quando eu tinha algumas moedas, quando não, a passos longes, pagava a minha penitência. Descia a Rua da Moóca, Glicério, Conselheiro Furtado e a Rua da Glória. A Liberdade já prenunciava traços e movimentos de asiáticos. Eu via a cidade ficar populosa. Na hora do almoço, comia pão com mortadela esquentada na chapa, bebia refrigerante “tubaína”, porque me lembrava a cor do fruto do guaraná da Amazônia, castanho-escura e, enchia a barriga de energia precária. Quanta história faz um imigrante na metrópole paulistana!

Eu tinha uma visão glamurosa de certos pontos da cidade. Hoje penso que era devido a humildade trazida da minha criação na Amazônia. Bráulio Gomes, Sete de Abril, do cinema que sumiu. Galerias, Nova Barão, Ipê, Metrópoles, Cine Lido da Rua Dom José de Barros, do Colégio Caetano de Campos da República. Eu me lembro de uma vez ter comprado o peixe pirarucu em postas salgadas na “Casa Godinho” da Rua Líbero Badaró, embrulhadinho que nem bacalhau seco. Foi uma festa quando cheguei a minha casa. Depois, sumiu o peixe da prateleira, não mais o vi à venda.

Certa vez, fugindo da chuva e da enchente do Tamanduateí, adormeci sob a guarida da Secretaria da Fazenda junto com outros meninos colegas de trabalho da firma “Instituto de Ótica Mino Lens”, quando baixou "a maré”, margeei a Avenida do Estado rumo à zona leste, destino Vila Industrial, bairro distante de todos. Não me lembro a hora da noite que cheguei a casa. Outros dias vieram à encomenda do progresso, os bate-estacas, as britadeiras e as picaretas arrancavam trilhos dos bondes do chão de paralelepípedos das ruas do centro da cidade. Certo dia, o Edifício Mendes Caldeira implodiu, com ele se foi o Cine Santa Helena. Curiosamente, como havia moços de fretes, comércio de alugueres promíscuos à porta do cinema. Na Padaria Santa Tereza da Praça João Mendes Junior, havia variedades de doces e de salgadinhos tentadores, e aroma de café com leite. Quando restava um dinheirinho, eu bebia uma canja quente de galinha, era meu almoço. Parecia que a cidade era mais fria. Eu tinha muita saudade do calor úmido de Manaus e de Santarém.

Sob o Viaduto do Chá, havia a “Liga das Senhoras Católicas” que servia comida a preços convidativos aos que contavam as moedas para almoçar. Alguns insatisfeitos comentavam entre outros “boys” que a carne era de gatos que ficavam a reverenciar as estátuas do jardim mal cuidado do Vale do Anhangabaú. Rui Barbosa era o mais cortejado. Parecia que os coitadinhos exigiam do patrono um habeas corpus para suas vidas efêmeras.

Houve fevereiro grandioso no MVNICIPAL, no início dos anos 70, trabalhei de aprendiz de eletrônica e de iluminação decorativa, para o baile de carnaval que a firma havia feito a iluminação e a decoração do baile de gala. Pulei, pulei e pulei de smoke, alugado pela Atimil Ltda., eu puxava fios elétricos e controlava as luzes coloridas. Foi um carnaval e tanto. Outra vez, provei uma sopa de cebola na Estação Rodoviária da Luz. Da estação peguei um ônibus-leito e acordei nas serras de Caxias do Sul e depois Novo Hamburgo, numa feira de couro e sapatos. Naqueles tempos, muita gente chegava a São Paulo. A cidade era uma metamorfose em expansão. Encontrar-se aqui fazia a diferença. Os sotaques do Brasil, português-ítalo que restou das penínsulas dos além mares. Sou paulista-paraense que aprendi a comer spaghetti e frango al sugo e apreciar os tintos, à noite pizza. Hoje, tenho Lucia companheira e Enzo, um menino sadio e belo que aos pouquinhos tentam apreciar o açaí, tacacá, tucupi “taído”, quando encontro às saudades. Mais ainda não vimos de perto os suplícios do Círio de Nazaré nem a romaria de Nossa Senhora de Fátima!

In Verdades - textos reunidos 2005

7 comentários:

Anônimo disse...

oi, simão, meu bom amigo! só hoje pude ler os seus textos, tive sorte porque li parte I e II. são histórias muito lindas, belas memórias, ricas em detalhes, não há quem não se comova diante de muita franqueza. tem mais?? parabéns!!!

bjs. professor!
Analucia

Unknown disse...

MEU AMIGO SIMÃO! VOCÊ SE SUPERA A CADA DIA! É INCRÍVEL A FORMA COMO VOCÊ, COM SEU BRILHANTE DOMÍNIO DAS PALAVRAS, NOS EMOCIONA COM HISTÓRIAS SIMPLES, DESCREVE COISAS CORRIQUEIRAS E TRIVIAIS DO COTIDIANO DE FORMA BELAMENTE POÉTICA!

Anônimo disse...

do seu irmao bento,muito bonito os seus dizeres,sobre nosso passado e lembranças vc têm talento eu o admiro parabéns.

abraços.
BENTO

Fragmentos Betty Martins disse...

querido___________Simão





belas.histórias!




com uma narrativa excelente





fazes sentir______a maravilha das lembranças______a riqueza que cada um de nós_______possui no arquivo da memória_______...











beijO_____C_____carinhO

Anônimo disse...

Olá Simão,

A segunda parte li outro dia e fiz um comentário no blog. Você recebeu?
A primeira parte li em outra oportunidade mas foi bom rele-lo. É claro que eu me acho
no texto! Era um tempo de muitas privações mas éramos jovens e não tinhamos desenvolvido
muitas necessidades. Com pouca coisa nos sentiamos os caras mais felizes do mundo.

Você se lembra quantos bailinhos aconteciam do nada? Bailinhos na casa do Zé Negão, do
Haroldo. Lembra-se. Bailinhos sempre com as mesmas meninas e rapazes.
Lembra-se do ritual do sábado a tarde, preparação para o bailinho ou para as soirées do Cine Max, ou Lido lá em São Caetano?
O espelho de moldura alaranjada pendurado numa goiabeira no fundo do quintal da sua casa, e aquela fila para fazer a barba. A sua
não passava de arremedo mas mesmo assim, ainda merecia uma boa esfregadela com Spicy.

Um abraço
Mauro

flor disse...

Olá querido amigo Simão, outro dia tentei responder seu comentário, mas vacilei na hora de enviar, não tenho certeza se chegou ai por isso vou repetir já que gostei bastante das pinceladas que destes na minha poesia.
Obrigada pelo carinho.
Um domingo especial para você.

Abraços no seu coração
Flor

J Araújo disse...

Navegando nesse mundo virtual, acabei encontarndo seu espaço. Ledo este post percebi que és também um sauoso como eu. É.... e quem não guarda uma ponta de saudade do passado?